15 de fevereiro de 2008

O QUE É MUNDANISMO?


1. O CRISTÃO E O SEU RELACIONAMENTO COM O MUNDO

Presenciamos na atualidade um mundo onde quase tu­do é relativo, onde a filosofia humanista existencialista impera e o secularismo derruba tradições e doutrinas reservadas e pregadas pela Igreja há séculos.

Estamos vivendo, basicamente desde a segunda metade do século passado, em um mundo que sofre transformações numa velocidade vertiginosa. Conseqüentemente, conceitos são alterados ou relativizados, costumes são globalizados, tradições são abandonadas, valores e preceitos são termos que agora exigem uma definição ampla, visto que convivemos em uma aldeia global.

Neste momento, como lugar de apropriação e construção de conhecimento espiritual, a Igreja tem como papel fundamental preparar seus membros para conviver em um mundo que se transforma dia a dia. Assim sendo, existem conceitos a serem repensados, estuda­dos e repassados aos fiéis.

Entretanto, é possível perceber no meio evangélico uma grande dificuldade para tratar de alguns assuntos de natureza doutrinária e, mais principalmente, quando o assunto diz respeito à conduta do cristão em seu convívio social, ao modus vivendi denominacional, pois é justamente nessa área que é possível perceber uma grande tensão na Igreja, principalmente por parte daquela ala mais conservadora ou daqueles que adoram espiritualizar textos bíblicos, interpretando-os fora do contexto.

É muito comum, quando o assunto diz respeito ao que seria mundanismo, ouvirmos expressões do tipo: "alguns irmãos que estão querendo trazer o mundo pra dentro da igreja!" (como se isto fosse possível); ou "... já não somos mais do mundo!" (como se fosse possível evadirmo-nos historicamente dele); ou ainda uma definição do tipo: "Mundanismo é a prática dessas pessoas que infiltram ensinamentos desnecessários na igreja, misturando de forma inescrupulosa o trigo com o joio" (o difícil nessa definição é estabelecer o que é e o que não é necessário).

De outro lado, há aqueles que pretendem levar o assunto para um aspecto mais intelectualizado, pendendo para o relativismo, como é possível perceber na seguinte afirmação: "Essa questão de mundanismo ou modernismo é muito subjetiva, na minha opinião. Cada um pensa de um jeito, mas o que acaba falando mais alto é a tradição, a cultura. O que é mundanismo pra mim pode não ser pra outra pessoa e vice-versa".

De forma que urge entendermos o que de fato significa "mundanismo". Ora, o termo “mundanismo” é o substantivo do adjetivo “mundano” e o Dicionário Aurélio define assim: “Vida mundana; hábito daqueles que só procuram gozos materiais”. A partir dessa definição, percebe-se facilmente que não é absolutamente uma palavra que seria usada para descrever a conduta de um cristão. Entretanto, o que seria vida mundana? O que é mundanismo hoje em dia? O que serve e o que não serve para o cristão moderno neste mundo? Até onde, como cristãos, podemos participar nas áreas de esporte, lazer, cultura e política?

Quando coloco estas perguntas para que sejam repensadas, o faço na perspectiva de que já uma série de conceitos e valores foi alterada em nosso meio, para o benefício dos cristãos, e de que precisamos reexaminar aquilo que dizemos ser mundanismo, termo esse, como observado, de conceituação bastante relativa em nossos dias.

Não obstante isso, creio que o segredo para que possamos estar no mundo sem sermos do mundo, conforme nos ensina Jesus no Evangelho de João 15 e 17, está em defi­nir e compreender o conceito de Mundo na Bíblia, pois, de acordo com Caio Fábio:
A palavra mundo é uma das mais complicadas do Novo Testamento, em função do uso ambíguo que as traduções bíblicas fazem de palavras gregas diferentes. Desta forma, palavras gregas distintas são traduzidas para o português como sendo a mesma palavra: mundo. Todavia, as palavras usadas no texto original mantêm uma coerência moral e de conteúdo com aquilo que elas significam. A palavra mundo, na visão evangélica, entretanto, tem sempre uma conotação negativa, em razão dos textos fortíssimos que emprestam ao mundo tal negatividade. Há, contudo, uma quantidade expressiva de porções da Bíblia que falam de mundo sem ligá-lo a qualquer conteúdo maligno ou pecaminoso.[1]
Dessa forma, passaremos a pensar sobre o conteúdo teológico exegético do termo "mundo", com base nos escritos do Novo Testamento.
2. ETIMOLOGIA DA PALAVRA MUNDO
A palavra grega traduzida para mundo (kosmos) encontra-se citada no Novo Testamento num total de 187 vezes e sempre foi traduzida, com uma única exceção, pela palavra "mundo". Esta mesma palavra é também traduzida de outros dois termos gregos, quais sejam: Aion, em suas várias formas, significando tempo, era, 41 vezes; e oikouméne, significando “terra ha­bitada”, os homens todos que a habitam, 14 vezes.[2]

2.1 Mundo como sinônimo de criação, cosmos, natureza

O vocábulo grego kosmos significa, por derivação, “o mundo organizado”, significando, também, “ordem, regularidade, disposição e arranjo”. Taylor traduz como: “mundo, raça humana, universo, a soma das coisas criadas”.[3] É também traduzido como sendo “o mundo criado”, “todas as coisas” ou como “o céu e a terra” (Atos 17:24).

Neste sentido, kosmos é o mundo criado pelo Verbo (João 1:10), e era justamente desse mundo que Jesus falava quando afirmou que de nada aproveitaria a um homem ganhar o mundo inteiro, se nesse processo viesse a perder a sua alma (Mateus 16:26). Mas, é também nesse mundo que a natureza se faz presente para proclamar a glória de Deus (Salmos 19:1), sendo obra e criação de Deus, onde tendo acabado a sua obra na terra “viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom” (Gênesis 1: 31).

Compreendendo-se isto, depreende-se que nenhuma restrição deve ser imposta ao cristão impossibilitando-o de amar a natu­reza, cuidar dela e usufruir da mesma.

2.2 Mundo como sinônimo de sociedade humana

No sexto dia, depois de haver criado todas as coisas pela Sua palavra, Deus fez o homem à sua imagem e semelhança e lhe chamou Adão que quer dizer: Homem Terreno; Humanidade, do hebraico Adam. A partir daí a humanidade passou a ser a parte mais importante do universo criado para Deus.

É também nesse sentido que o vocábulo kosmos é frequentemente empregado nas escrituras tendo o sentido limitado de “seres humanos”, sendo então sinônimo da expressão grega he oikouméne, “a terra habitada”, ou seja, os homens todos que a habitam, que na Bíblia de língua portuguesa é igualmente traduzida por “mundo” no Novo Testamento.

É nesse "mundo" que os homens nascem e é nele que vivem até que morram (João 16:21). Neste mesmo mundo o Filho de Deus se fez carne e habitou entre nós (João 1:14). Foi esse mundo de homens e mulheres, de todas as raças, tribos, línguas e nações que Deus amou de tal maneira que enviou seu Filho unigênito para morrer e redimir de todo pecado (João 3:16).
Lewis Sperry Chafer diz que:
Nesta passagem (João 3: 16), como em nenhuma outra, temos o uso restrito do termo kosmos. Não restrita, como os redencionalistas limitados querem crer, para os eleitos desta dispensação, mas restrita à humanidade à parte de suas instituições malignas, suas práticas e seus relacionamentos.[4]
É nesse sentido que Paulo diz que o mundo é dos cristãos, como algo bom, culminando em Deus (I Coríntios 3:22-23). E é também a respeito disso que Jesus orou ao Pai pedindo que não nos tirasse do mundo (João 17:15), para que não ficássemos alienados ou fugíssemos da res­ponsabilidade de pregar o Evangelho (Mateus 28:19; Marcos 16:15; João 17:18,21,23).

Caio Fábio diz que: “Ele (Jesus) sabe que a única maneira possível de servir a Deus na história humana é estando no Mundo-Espaço-Criacional, sem que se seja do Mundo-Sistema-Maligno”.[5]

2.3 Mundo como sistema satânico

Mateus registra uma parábola de Jesus comparando os efeitos das sementes lançadas em lugares diferentes e diz que “o que foi semeado entre os espinhos é o que ouve a palavra, porém os cuidados deste mundo e a fascinação das riquezas sufocam a palavra, e fica in­frutífera” (Mateus 13:22). Aqui a palavra “mundo” vem do vocábulo grego Aion, que pode significar: época, o longo prazo de um regime presidencial, um período do plano divino para a história humana, ciclo, eternidade, espírito de uma geração, tempo, era ou sistema de coisas. Portanto, não significa “mundo”, em absoluto, no sentido de criação, embora seja assim traduzi­do em Mateus 13:22,39,40.

Nos escritos joaninos, o mundo-ordem injusta, possui seus próprios valores, sistemas e governo (João 8:44; 12:31; 14:30; 16:11).

É neste último conceito que o mundo é visto como sistema de i­njustiça sócio-político-econômica, de sedução, de tentação, de pecado gerando morte, de corrupção em todos os meios, de iniqüidade etc. é referente a isto que João diz que não se deve amar o mundo nem as coisas que no mundo há (I João 2:15). É ele também quem diz que “mundo jaz no maligno” (I João 5:19).

Embora o mundo-criação pertença a Deus, está atualmente sob o domínio de Satanás, “o príncipe deste mundo”, o “deus deste século” (João 12:31; 14:30; Efésios 2:2; II Coríntios 4:4. Este domínio lhe foi entregue pelo homem quando pecou no Jardim do Éden (Gênesis 3). Foi exatamente isto que ele ofereceu a Cristo no deserto, os reinos des­te mundo e a glória deles (Mateus 4:8,9). Após a entrada do pecado no mundo, produzindo conseqüências em nível universal, este ficou desordenado, ficando debaixo do domínio maligno, passando a ser li­teralmente um kosmos diabolicus (I João 5:19).

Este mundo-sistema-maligno inclui seus governos, antideus, con­flitos, seus armamentos, suas invejas, sua educação humanística, sua cultura, ultimamente concentrada no misticismo, as religiões da imoralidade, onde nada é pecado e tudo é relativo, e o seu orgulho, “fazendo com que o homem não aceite a sua posição de criatura nem da sua dependência do Criador, e que o leva a agir como se ele mesmo fosse o senhor e doador da sua vida e a cobiça, que o leva a desejar e a possuir tudo quanto é atrativo aos seus sentidos físicos (I João 2:16)”.[6]
Assim podemos dizer que o mundo está localizado no maligno e está sob o poder dele, até que dele seja retirado, como diz o viden­te do livro de Apocalipse: “O reino do mundo se tornou de nosso senhor e do seu Cristo, e Ele reinará pelos séculos dos séculos” (Apocalipse 11:15).
3. COMO DEVE SER MEU RELACIONAMENTO COM O MUNDO?
Com o mundo natureza, criação de Deus, devo amá-lo, cuidá-lo em todas as suas formas, pois eis que tudo “é muito bom”, segundo as Escrituras, pois "o mundo continua pertencendo a Deus, a des­peito do fato que no seu estado presente esteja debaixo do poder maligno. No fim, todavia, a verdadeira beleza do mundo será restaurada e, uma vez destruído todo o mal e uma vez manifestados os filhos de Deus, a criação inteira “... será redimida do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus” (Romanos 8:21). Então é que Deus será “tudo em todos” (I Coríntios 15:28); ou, conforme esse versículo tem sido traduzido bem recentemente, “estará presente de maneira total no universo”.[7]
Com o mundo sociedade humana, devo pertencer a ele, fazer parte do social, influenciá-lo com o meu viver cristão, pois para isso somos “sal da terra e luz do mundo” (Mateus 5:13). Jesus disse que o campo a ser evangelizado não é menor do que o próprio mundo (Marcos 16: 15).
Por este motivo o cristão é convocado a esforçar-se no sentido de transformação das estruturas sociais, de modo que sirvam mais fielmente ao intento do criador. Assim, ao mesmo tempo em que ele é chamado para permanecer no mundo, é também proibido de conformar-se com o mundo.[8]
No que diz respeito a nosso relacionamento com o mundo-sistema-maligno, devemos lutar “contra os principados, contra as potestades, contra os príncipes das trevas deste século, contra as hostes espirituais da maldade nos lugares celestiais” (Efésios 6:12).
É justamente na terceira acepção de "mundo" que encontramos o que vem a ser o "mundanismo" do qual os cristãos realmente devem se afastar. Esse era o "mundo" ao qual Tiago se referiu, dizendo que: "Infiéis, não sabeis que a amizade do mundo é inimizade contra Deus? Portanto, quem quiser ser amigo do mundo coloca-se na posição de inimigo de Deus" (Tiago 4.4). Ele então enumera as seguintes atitudes mundanas: guerras (v. 1), lutas (v. 1), cobiças (v. 2), soberba (v. 6), fofoca ou maledicência (v. 11) etc. Trata-se, portanto, daquelas atitudes que desonram a Deus, ao próximo e ao próprio indivíduo. O mundanismo é uma aversão a Deus e aos seus preceitos. É desse mundo, desse sistema antideus, que a Igreja deve se proteger.
Abordando este assunto, Raniere Menezes aponta que:
A igreja contemporânea transformou-se, em grande parte, em uma filosofia de entretenimento e boas atitudes mentais, um evento para espectadores. O mundanismo tem muitas facetas e é demasiadamente flexível e relativista. A história da igreja e das doutrinas cristãs está sendo deletada num clique. Justificação, Santificação, Soberania de Deus, Graça, etc, estão sendo apagadas e substituídas por um evangelho diluído em psicologia, hermenêutica alegórica, sociologia, auto-ajuda, pluralismo, antiintelectualismo, enfim, todas as vilezas do mundanismo. Pessoas que não oram como pecadores na presença invocada do Deus Santo, mas como financiadores que querem retorno líquido e certo, tornam-se um alvo fácil para as influências essencialmente mundanas. E muita gente está sendo possuída, não pelos demônios, mas pelo sentimentalismo manipulado por “neuropastores”. Enquanto o povo chora em toda a sua sensibilidade, os lobos carniceiros viajam para Israel. O mundanismo está no “controle” (temporário), pois tem influenciado a perspectiva ética da igreja, e conseqüentemente as atitudes religiosas também são controladas por ele.[9]
À luz desta ênfase bíblica, John Stott faz o seguinte questionamento:

[...], o que é que devemos dizer para a geração moderna dos antiintelectuais, os emocionais? Sinto muito ter de dizer que eles estão se autoproclamando intensamente, como sendo crentes mundanos.Pois, “mundanismo" não é apenas uma questão (como fui ensinado a acreditar) de fumar, beber e dançar, nem tampouco aquela velha questão sobre embelezar-se, ir a cinemas, usar minissaias, mas o espírito do século. Se absorvermos sem qualquer exame os caprichos do mundo (neste caso, o existencialismo), sem que primeiro sujeitemos isto a uma rigorosa avaliação bíblica, já nos tornamos crentes mundanos.[10]

Ser mundano, portanto, é aderir e seguir aquilo que caracteriza as atitudes e ações das massas; dos incrédulos, das vãs filosofias ou ideologias que dominam o mundo-sistema-maligno. De forma que, como se pode perceber, o mundanismo está mais presente em nosso meio do que julga nosso inútil autoconceito triunfalista e separatista.
Infelizmente temos que usar de algumas coisas que estão no mundo, mas quando amamos mais estas coisas do que a Deus, estamos abusando (I Coríntios 7:31).
Assim é que, em I João 2:15-16 encontramos três motivos para não a­marmos o mundo-sistema-maligno:
1º) Se eu amo o mundo, não posso amar nem servir a Deus, e conseqüentemente o amor do Pai não está em mim (Mateus 6:24; Tiago 4:4)
2º) As coisas deste mundo não procedem do Pai, mas sim dos prazeres físicos, mental e estético, bem como da soberba da vida, que é o orgulho ostensivo da posse dos bens materiais.
3º) O terceiro motivo para não se amar o mundo é que ele é transitório, um dia vai acabar e com ele os que o serviram.
De acordo com essas premissas, mundanismo é tudo aquilo que colocamos em primeiro lugar em nossa vida, preterindo o lugar de Deus, colocando assim todo o nosso interesse e afeição. Sendo assim, os prazeres e as ocupações seculares e até mesmo religiosas, que em si mesmos não são necessariamente errados, tornam-se errados quando se lhes dá uma atenção especial.
Devemos, assim, primar pelo Reino de Deus em nossa vida, tendo o equilíbrio de Paulo que dizia: “Todas as coisas me são lí­citas, mas nem todas as coisas me convêm. Todas as coisas me são lí­citas, mas eu não me deixarei dominar por nenhuma delas” (I Coríntios 6:12).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
[1] ARAÚJO FILHO, Caio Fábio de. Oração para viver e morrer. Rio de Janeiro: Vinde Comunicações, 1994, p. 100.
[2] CHAFER, Lewis Sperry. Teologia sistemática, v. 1. São Paulo: Imprensa Batista Regular, 1986, p. 390.
[3] TAYLOR, Willian Carey. Introdução ao Novo Testamento grego. 9 ed. Rio de Janeiro: JUERP, 1990, p. 360.
[4] CHAFFER, Lewis Sperry. Op. cit., p. 391.
[5] ARAÚJO FILHO, Caio Fábio. Op. cit., p. 101.
[6] DOUGLAS, D.J. (ed.). Novo dicionário da Bíblia, v. 2. São Paulo: Vida Nova, p. 1077.
[7] DOUGLAS, D.J. (ed.). Idem, p. 1078.
[8] GARDNER, E. Clinton. Fé bíblica e ética social. Rio de Janeiro: JUERP, 1982, p. 247-248.
[9] MENEZES, Raniere. Mundanismo: o vil metal. Disponível em: http://ejesus.com.br/conteudo/4568/. Acesso em: 6 fev. 2008.
[10] STOTT, John R. W. Cristianismo equilibrado. 3 ed. Rio de Janeiro: CPAD, 1995, p. 23.

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