30 de julho de 2009

NEGANDO-SE A SI MESMO

"E dizia [Jesus] a todos: Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, e tome cada dia a sua cruz, e siga-me" (Lucas 9:23).
O verdadeiro discípulo entrega os seus direitos a Deus e ao próximo. A fórmula teológica, comportamental e psicológica através da qual Jesus traduziu essa afirmação é a seguinte: "A si mesmo se negue".
Infelizmente, poucas verdades têm sido tão mal compreendidas quanto esta que se refere ao imperativo da autonegação. Em razão deste fato acho melhor começar dizendo o que não é autonegação.
Corre no meio evangélico a idéia de que autonegação é aniquilamento da vontade. Contudo isso é falso. A volição é parte fundamental da estrutura sadia da psique humana. A pregação da aniquilação da vontade não é cristã, é budista. Em razão disto há milhares de cristãos vivendo num cristianismo doutrinário, com a interferência de uma espécie de budismo psicológico e existencial. Não me admira que tal conceito de autonegação tenha vindo de cristãos do Extremo Oriente, como Watchman Nee. Não resta dúvida de que o negar-se a si mesmo tem suas implicações na vontade humana. Entretanto, isto não deve diluir toda a vontade da pessoa.
Pela má compreensão dessa realidade há os que pensam que a autonegação acerca da qual Jesus falou é a antítese de tudo quanto possa se constituir em desejo. Neste caso, até a negação de si seria um desejo contra todo desejo natural. Alguns absolutizam tanto este conceito que chegam a incluir entre as vontades que devem ser golpeadas o desejo de pregar o Evangelho, declarando: Este desejo vem da alma. E com esta idéia vão budificando o Cristianismo, transformando seus seguidores em seres cujo ideal é a impessoalidade, a morte da pessoa, do desejo, da vontade e, por fim, da vida plena. Se têm desejo de ir à praia, se proíbem. Afinal, isto é uma vontade. Se sentem vontade de saborear determinada comida, negam-se. Afinal, isto é um desejo.
Também negar-se a si mesmo não é tornar-se um mórbido alienado, uma espécie de avestruz, com a cabeça enterrada no buraco da religião, pensando que assim pode se refugiar definitivamente do mundo. Alienação não é autonegação, mas suicídio intelectual, social e humano. É exílio da humanidade individual no cativeiro do escapismo religioso.
Outra faceta distorcida do convite de Jesus à autonegação é aquela que se expressa em termos de um meticuloso intimismo legalista. Esta maneira de entender o convite de Jesus transforma a alma em algo parecido a um loteamento de cemitério, onde muitas cruzes têm de ser fincadas a fim de se matarem as áreas vivas da alma. E isto não passa de uma negativa atitude castrante. Trata-se de uma autonegação que só se volta sobre si mesma. Paradoxalmente, vem a ser um autonegar-se egoísta. Negam-se para si mesmos, não apenas a si mesmos. Ninguém é beneficiado com tal atitude. E a vida se torna prisioneira, agrilhoada na cadeia psicológica da falsa perspectiva da autonegação.
A auto-anulação que não gera ação e obras altruístas em favor dos outros é apenas suicídio existencial e psicológico. É a repetição do isolamento dos mosteiros medievais na dimensão do santuário da alma humana. Esse negar-se a si mesmo só é sadio se implica um dar-se a si mesmo.
Autonegação não é automartírio. Não é arriscar desnecessariamente a vida. Não é autoflagelação, seja física, seja psicológica. Na perspectiva do negar-se a si mesmo não podemos nos esquecer de que Jesus veio para que tivéssemos vida e vida em abundância.
Negar-se a si mesmo também não é praticar exercícios ascéticos. Não podemos nos esquecer de que quem nos incitou ao negar-se a si mesmo foi Jesus de Nazaré, aquele que comeu sem lavar as mãos, freqüentou a casa dos fiscais de renda que recebiam propina, aceitou sentar-se à mesa com pecadores, e foi chamado de glutão e bebedor de vinho porque comia com alegria e entusiasmo.
Negar-se a si mesmo não é nada que vai além do projeto de vida de Jesus. Qualquer invenção de autonegação que não seja encontrada e praticada na vida de Jesus é doentia, patológica e sub-humana. Cristo é o protótipo da autonegação. Nele a autonegação não é incompatível com felicidade. Nele o negar-se a si mesmo admite a tensão existencial vivenciada por Paulo: "entristecidos, mas sempre alegres; pobres, mas enriquecendo a muitos; nada tendo, mas possuindo tudo" (II Co 6:10).
Quando o cristão pratica o verdadeiro negar-se a si mesmo é que o seu eu se purifica. E nesse processo morre não o ego, mas sim o egoísmo. Além de ser promovida pelo dar-de-si, essa autonegação pode também ser resultado das pressões produzidas pelo estilo de vida do cristão:
"Em tudo somos atribulados, porém não angustiados; perplexos, porém não desanimados; perseguidos, porém não desamparados; abatidos, porém não destruídos; levando sempre no corpo o morrer de Jesus para que também a vida de Jesus se manifeste em nossa carne mortal" (II Co 4:8-11).
Negar-se a si mesmo é renunciar a tudo quando se tem, pois há muitos aspectos daquilo que somos mais fáceis de serem renunciados do que algumas coisas que temos. E mais: a autonegação envolve a renúncia da possibilidade de praticarmos o pecado moral e motivacional.
No entanto, muito acima disso está o abrir-se inteiramente a Deus e ao próximo. Negar-se a si mesmo só faz sentido se for um negar-se por alguém que não seja o próprio eu. E as duas únicas categorias de existência consciente fora de mim para as quais preciso doar-me são Deus e o próximo. Assim, a autonegação do ponto de vista cristão se realiza na autonegação coincidente com uma reação altruísta.
Aceitar o convite de Jesus para segui-lo já implica, pois, o início desse processo, já que, para andar com ele, o discípulo tem que estar disposto a negar tudo, desde os bens materiais até os relacionamentos afetivos.
Trecho extraído do livro:
ARAÚJO FILHO, Caio Fábio de. Seguir Jesus: o mais fascinante projeto de vida. Niterói: Vinde Comunicações, 1992.

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